
Sopro de tudo: o fogo ancestral [introdução]
Giram os mundos, rodas se abrem, da escuridão nasce os primeiros clarões, o grande sopro cósmico anuncia a fênix que faz tudo nascer em fogo, para renascer em ouro.
Giram os mundos, o sopro ancestral explode em ouro cósmico, que aporta em São Salvador.
SALVADOR me chamou.
Século XVIII, 1760, Salvador.
Salvador me chamou. Eu sou Dona Fulô, a escrava que comprou a liberdade.
Nos idos de 1760, eu e muitas mulheres éramos escravas de ganho. Ganhar era comercializar com tabuleiros de quitutes, peixes, tecidos e turbantes a mando dos senhores brancos. Quando atingíamos o lucro de mando, o valor que passava, ficava em nossos bolsos, ou melhor, em nossos corpos negros.
A gente subvertia a ordem e adornava de ouro nossos corpos negros.
Nos ventos de clandestinidade, procurávamos ourives de axé que, escondidos, faziam joias para nós, mulheres negras que sonhavam em guardar o ganho em joias de adornos. Assim, as joias eram como roupa e o nosso corpo, era como um cofre ancestral que exalava poder e um sonho de liberdade.
Os ourives moldavam nossos corpos com ouro em anéis de talha dourada, figas, pulseiras de placas, argolas que se pareciam com pitangas, braceletes de ouro e outros artefatos mais.
Assim andávamos por Salvador. Negras. Negras douradas.
Nossas joias também eram como amuleto espiritual. Nós pedíamos dos ourives negros, colares de ouro em formato de fio de contas, balangandãs que atraiam sorte, saúde e força. Juntos, são penduricalhos de axé que traziam símbolos como alimentos, correntes, sol, lua, espadas, machados e outros elementos da nossa ancestralidade.
Nossas joias também eram adornadas como acarajés de ouro, bolinhos de fogo que pulsavam como nossa joia-amuleto de corpo, alma e espírito.
Um delírio de emoções explodia na Salvador que eu e muitas outras negras, em busca da liberdade, chamávamos de Salvador do Império das nossas joias negras, as joias das crioulas que queriam viver a paz de seu axé em voo livre.
Quando a saudade de África transbordava e nossos olhos não suportavam o mar de lágrimas, além dos tambores de axé, íamos à igreja rezar para aclamar mais força de espírito. Também tratamos de fazer joias com símbolos católicos, adornamos joias com a pomba do divino, a cruz, o sino e o terço de Santa Maria. Maria nos atendia, por isso, eu e outras mais fundamos e ajudamos a manter a Irmandade da Boa Morte, movimento que pregava a morte digna de negros e negras que sofriam no suor da escuridão e do esquecimento.
Salvador me chamou. E chamou outras negras mais! Salvador da maior balangandeira, Tia Ciata, que batucava seus quadris com a sonoridade desses amuletos de joias de nossa gente.
Salvador me chamou. E chamou outras negras mais! Salvador das negras Amas de leite, que empreendiam, mesmo forçadas, doses de amor e afeto. Em troca, eram alimentadas de doses de ouro.
Salvador. Minha Salvador, de Fulô e todas as negras de ganho que faziam da sua força de trabalho a realização de viver um sonho: de ser livre!
Salvador, de Dona Fulô, de Florinda Anna do Nascimento!
Das joias, fizemos livretude!
Fizemos amuleto espiritual!
Fizemos cofre em um corpo ancestral!
Das joias, fizemos reza,
fizemos força,
fizemos vida,
fizemos a força e o grito-ganho de LIBERDADE.
SALVADOR ME SALVOU.
E depois de tudo isso, nos levará, em 2026, para um Império dos Balangandãs, porque fomos, somos e seremos mulheres-joias afro-brasileiras.
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