
RESUMO
Irin Ajó Emi Ojisé conta a história de uma peregrinação de Orunmilá pelo continente africano com o objetivo de propagar saberes ao seu povo.
Orunmilá, considerado o mensageiro de Olodumarê, o "deus supremo", é a divindade detentora da sabedoria, com trânsito entre o céu e a terra, encarregado de organizar e ordenar o mundo nos caminhos do bem. Ele pede que Exu, o orixá dono e conhecedor de todas as rotas e veredas, o guie pelos territórios para encontrar o seu povo.
Nessa andança, Orunmilá vai parando de povoado em povoado e se transforma em máscara para transmitir suas mensagens em rituais sagrados. Nessas cerimônias, os indivíduos vestem suas máscaras e, por meio delas, acessam o mundo espiritual. É aí que Orunmilá, o espírito mensageiro, se conecta à alma de seus filhos, transmitindo os saberes necessários para que cumpram seu destino.
Em sua viagem, Orunmilá testemunha momentos eminentes da história africana, iniciando sua caminhada por Mali, país mais ao norte em que se registra a cultura das máscaras, e parte rumo ao sul, passando por territórios em que hoje se situam as nações de Burkina Faso, Costa do Marfim, Serra Leoa, Gana, Benin, Nigéria, Camarões, Gabão, Angola e República Democrática do Congo, visitando diferentes etnias para profetizar um futuro ancestral coberto de ewa e alafia!
JUSTIFICATIVA E CONTEXTUALIZAÇÃO
Os rituais com máscaras são tradição em nações da África Subsaariana, sendo um símbolo da diversidade das etnias presentes no continente africano. As máscaras refletem a arte, os saberes e as crenças de seus povos.
A cultura dos diversos povos africanos é riquíssima em elementos simbólicos e sua arte é conceitual. As máscaras são o exemplo perfeito disso. Elas expressam e sintetizam valores e ideias e podem reunir muitos elementos que mesclam aspectos animais, humanos e espirituais para expressar a visão de mundo compartilhada por seu povo, fortalecendo a coesão social e o sentimento de pertencimento.
Irin Ajó Emi Ojisé explora os significados e simbolismos dessas máscaras para reforçar os valores nelas contidos, em uma exaltação direta e indireta à cultura e à arte dos povos africanos.
O enredo buscou respeitar os sentidos reais de cada uma das máscaras apresentadas, contextualizando-as a uma leitura fantástica e carnavalizada da história africana, desde a antiguidade até um futuro projetado na liberdade poética do carnaval.
Na narrativa de nosso enredo, Orunmilá é o espírito que dá forma às máscaras e as utiliza com o intuito de ensinar o seu povo e direcioná-lo no caminho de odara e alafia. O espírito ensina por meio da máscara e a máscara ensina por meio de sua concepção artística. Assim, o enredo busca, ao mesmo tempo, valorizar a arte, a cultura e os valores morais presentes nos povos africanos.
Os desfiles de escola de samba são uma das raras expressões artísticas que se orgulham em fugir do eurocentrismo e do imperialismo cultural. Orgulhamo-nos de nossas origens africanas e, ano a ano, fazemos questão de ressaltar nossas raízes mais profundas. Sendo assim, o carnaval já é, em si, um exercício libertário e descolonizatório de corpos e pensamentos.
Irin Ajó Emi Ojisé é um "enredo afro" de uma África rica e plural que veste suas máscaras para mostrar a sua cara. Arte, cultura, identidade e descolonização...
odara!
SINOPSE
Do resplendor do orun, Orunmilá lança seu olhar sobre o ayê. O mensageiro de Olodumarê, bastião da sabedoria suprema, decide ir ao encontro de seu povo.
A divindade que a tudo responde por meio de Ifá agora se faz caminheiro e pisa a terra para instruir seus filhos no caminho de odara e alafia, que são seu verdadeiro destino.
Chama Exu, rei das encruzas e das veredas, das rotas e itinerários, das estradas e dos caminhos, para guiá-lo pelas veias do continente africano, indo ao encontro dos filhos de diversas nações e etnias.
A viagem do espírito mensageiro começa na região do Mali. Lá, ele encontra o povo Kanaga e presencia uma exuberante dança com lindas máscaras feitas em madeira.
Maravilhado, Orunmilá então se materializa em uma máscara para conceder o seu dom primordial: o trânsito entre ayê e orun (mundo físico e espiritual). A partir de agora ele estará por trás de cada máscara, penetrando o espírito de cada indivíduo que as entraja, fornecendo acesso ao mundo espiritual e aos saberes necessários para guiá-los ao seu destino.
A máscara em que ele se transformou nesse lugar simboliza artisticamente um pássaro, animal que transita naturalmente entre o céu e a terra. O pássaro representado na máscara sobre a cabeça tem os membros superiores virados para o orun (para cima), e os membros inferiores voltados para o ayê, para baixo.
Seguindo sua peregrinação, ainda pelas bandas do atual Mali, a divindade mensageira une dois povos em um mesmo culto: os Banama e os Tyi-Wará. Uma dança forte e envolvente toma conta do povoado. Orunmilá se revela em máscaras que aludem a antílopes, para conscientizar aquele povo de sua força e valentia.
Na fronteira do Mali com Burkina Faso, Orunmilá encontra os Dogon e resolve consagrá-los como exemplos a serem seguidos por todas as nações. As formas retilíneas que compõem as máscaras em que o espírito mensageiro se transformou naquele local indicam a retidão de seu povo, preceito sobre o qual cresceu aquela comunidade que viria a dar origem, séculos mais tarde, a Burkina Faso, país cujo nome significa, em suas línguas originais, "terra dos homens íntegros".
Um pouco mais ao sul, ainda em solo burquinês, o emi caminheiro chega ao povoado Bwa e assume a forma de máscaras geométricas, cujo zigue-zague simboliza o vai-e-vem dos espíritos da floresta. A mistura de branco e preto representa a ideia de equilíbrio entre o mundo físico e o espiritual, homem e natureza, divino e animal. Por isso é que a divindade também se revela em máscaras de búfalo nesta região, reforçando a importância da harmonia entre os dois mundos criados por Olodumarê.
Antes de partir de junto dos bwa, Orunmilá chama Nanã Buruquê, vodun da chuva e da lama, cujo nome significa "raiz", iabá mais antiga da África, para ensinarem ao povo que cuidar da natureza é como cultuar o seu próprio criador.
Seguindo as direções de Exu e o som do batuque dos Ogãs que embalam o ritmo da vida em cada comunidade, emi ojisé chega a terra que atualmente pertence a Serra Leoa. Por lá, conhece as poderosas mulheres Sowei e se transforma em uma máscara que só pode ser usada exclusivamente por elas. As máscaras de mulheres pretas, com as fibras que dela escorrem, ressaltam o valor da força feminina.
Já na Costa do Marfim, Orunmilá se revela ao povo Baulê e ao povo Dan. Aos baulês, em máscaras com feições humanas e chifres de búfalo folheados a ouro puro, para apontar a riqueza daquela região abençoada por Olodumarê, que concedeu a fertilidade ao seu solo e o marfim que faria daquele povo um dos mais prósperos do continente. Aos dan, o espírito assume a forma de máscaras de testa arredondada e avantajada e olhos cerrados para ensinar o dom da sabedoria.
Partindo a leste, Orunmilá chega ao território que hoje se conhece como Gana. Ali, presencia diversas cerimônias em celebração à fartura das colheitas feitas pela etnia Kpelie. Então, em uma dessas festanças, o espírito se transforma em uma bela máscara que mistura elementos animais e da natureza, com feições humanas, chifres de antílope, que remetem ao dom da agricultura, e formas geométricas que simbolizam elementos da natureza, como a terra e as pedras.
Na cultura kpelie, os antílopes foram os animais responsáveis por ensinar a cultura do plantio à civilização humana. Para esse povo, Orunmilá reforçou o valor do trabalho para a prosperidade de toda a coletividade.
Chegando ao Reino de Queto, onde hoje se localiza o Benin, o emi conhece o obá Esigie, líder político local, e se lhe concede na forma de uma máscara que homenageia sua mãe, a grande estrategista militar Idia, para que ele e seu povo jamais se esqueçam de sua inteligência.
Orunmilá parte em direção ao Reino de Oió, atual Nigéria, conhecendo diversos povos iorubás pelo caminho. Quando chegou à comunidade Gueledé, a divindade mensageira se encantou com tamanha força e beleza. Aquela sociedade era composta exclusivamente por mães pretas, as iyás.
No meio delas, o espírito mensageiro se traduziu em uma máscara capaz de refletir não somente o respeito e a valorização das mulheres para a sociedade, mas a resiliência das iyás como lição a todos os povos. A máscara representa um rosto feminino com cobras enroladas sobre a cabeça, demonstrando a capacidade de reação a quaisquer intempéries da vida.
Ao se aproximar do centro de Oió, Orunmilá está agora diante do palácio do governo, regido por seu quarto alafin: Xangô. O governante apresenta ao emi caminheiro o culto aos egungum, espíritos ancestrais. O rito, fundado por Xangô, celebra a vida dos antepassados que construíram aquela sociedade.
Orunmilá, então, se une a Xangô para ensinar o valor da justiça e concede uma máscara para ser usada na celebração Egungum, com grandes orelhas, pois considera que a justiça vivida em Oió deve-se ao fato de seu rei aplicar-se a ouvir atentamente o seu povo.
Sobe o som do toque do alujá, espalhando o axé que emana do coração iorubá. Vibra o couro do atabaque no palácio real. Giram iaôs e ebomins. E festa em Oió!
Seguindo sua peregrinação no sentido sul, Orunmilá chega ao território em que viria a se fundar a República dos Camarões e encontra a etnia Ekoi. No vilarejo em que habitam, o espírito se corporifica na forma de uma máscara que exibe dois rostos opostos, um virado para cada lado, simétricos, com grandes chifres e aparência de carrancas, traduzindo potência e rigidez ante os contrastes da vida.
O mensageiro usa essa máscara para aludir à natureza dual da vida, destacando as forças opostas presentes no universo, como o carnal e o espiritual; os vivos e os mortos; o bem e o mal. A rigidez, simbolizada pelos chifres, ante esses contrastes instrui ao exercício do autodomínio e o dom da temperança.
Quando chegou ao povoado Bamileque, Orunmilá se deparou com uma suntuosa cerimônia em homenagem aos líderes do grupo. Então, o emi se transformou em uma opulenta máscara que remete à imagem de um elefante. A figura do animal, ricamente bordada com missangas, foi escolhida para simbolizar a altivez e o poder que são dignos de seu povo.
Mais ao sul, em terras que hoje se reconhecem como Guiné Equatorial, o espírito mensageiro encontra a grande etnia banto Fang, grupo nômade pacífico que se deslocou da África Central até a costa ocidental do continente, em fuga constante de guerras e conflitos entre outros povoados.
Considerando o histórico pacífico daquele povo, o emi visitou os rituais de suas aldeias e materializou-se em uma máscara branca de rosto e nariz alongados, bocas e olhos cerrados para destacar o princípio da paciência.
Chegando ao norte do que hoje se conhece como Gabão, Orunmilá presencia os rituais sagrados do povo Kwele e se transforma em uma máscara cujo rosto é contornado por seus próprios chifres. A mensagem, neste lugar, é de proteção.
Ainda no Gabão, o mensageiro aprecia uma linda cerimônia de iniciação de garotos e garotas Kota. Neste rito, os anciãos ensinam aos jovens a importância do respeito aos seus antepassados. Orunmilá então assume a forma de uma máscara com grande rosto e corpo pequeno, fazendo alusão ao corpo das crianças. Os olhos e sobrancelhas côncavos denotam modéstia e submissão. Aqui, o ensinamento prevalente é o dom da humildade, que deve acompanhar os jovens até o final de suas vidas.
Chegando a Matamba, Orunmilá presencia os horrores da escravidão. O emi vê de perto destinos sendo ceifados e famílias sendo separadas. Por lá, decide ensinar sobre o amor por meio da dor das mães dos escravizados, algumas que viram seus filhos partirem para além-mar sem poder evitar e outras tantas que testemunharam a vida de seus filhos se esvair no oceano.
Então, no ritual sagrado do povo Tchokwe, Orunmilá toma a forma de uma máscara com rostos de mulheres pretas feridas e com lágrimas de sangue para reforçar que a separação da família sempre produzirá dor e sofrimento.
Exu então conduz o emi caminheiro a Luanda, para que encontrem Aluvaiá, guardião dos bantos de Angola.
No encontro, Orunmilá propõe que empreendam uma guerra contra o terror da servidão a que o povo está submetido. Aluvaiá, então, incendeia a baía de Luanda, transformando a água em fogo, queimando as caravelas e navios negreiros e toda sua tripulação de demônios.
Após cessar o horror da escravidão em solo angolano, libertando sua gente da servidão inglória que não faz parte do seu destino, Orunmilá parte ao encontro das nações congolesas.
No caminho, o espírito mensageiro percebe que a desonra da servidão não acabou, mas permanece viva com outra roupagem. Ele está no Congo Belga, onde reis brancos de coroas postiças governam verdadeiras majestades pretas.
Ainda ao sul do Congo Belga, Orunmilá visita os Songye, herdeiros do grande Império Luba, e os convoca à revolta, se transformando em uma máscara carrancuda que deve ser usada em conflitos armados para que o emi possa lembrá-los de sua valentia quando estiverem no campo de batalha.
A máscara songye é listrada em preto e branco para simbolizar a ideia de guerra e paz, para dizer que as lutas que valem a pena serem empreendidas são sempre em nome da paz de seu povo. Os olhos vermelhos representam a valentia songye, anunciando que sua gente nada temerá ante qualquer inimigo.
Às margens do Rio Cassai, Orunmilá encontra os Kuba preparados para guerrear por independência. O emi visita seus rituais sagrados e se transforma em uma máscara que remonta ao herói fundador do Reino Kuba, Shyaam Mboul a Ngoong, para lembrá-los que a coragem que deu origem àquele povo é a mesma que haverá de perpetuar sua existência.
Liberta, então, pela coragem e valentia de sua gente, a agora República Democrática do Congo exige de volta seus patrimônios culturais. Reparação! A ancestral máscara Kakungu retorna às suas origens e se torna símbolo da independência congolesa.
Orunmilá visita as comunidades Beteke e observa que as máscaras agora estão sendo produzidas artisticamente, como sinal de identidade cultural de seu povo. Inspirado, o emi, então, se transforma em uma belíssima máscara arredondada e avermelhada, com traços geométricos ornamentando toda ela, para exaltar a arte e o autoconhecimento de seu povo por meio de sua própria identidade cultural.
Assim, entre os beteke, o emi deixa a sua lição derradeira: um povo que tem orgulho de sua própria identidade e investe na sua arte original é um povo livre. O Congo outrora desfigurado, dilapidado e expropriado em seu próprio chão, agora dá uma lição ao mundo de descolonização cultural e autoreconhecimento.
O último ato de Orunmilá nessa viagem está relacionado a um dom fundamental seu: a profecia. O emi ojisé profetiza uma África utópica e artística; uma África que
caminha para o futuro celebrando sua ancestralidade; uma África povos e nações podem vivenciar odara e alafia.
Que os ensinamentos, os saberes e as profecias de Orunmilá iluminem de todos os filhos e floresçam o destino de todas as nações. Axé!
Bôjübôjú ní agbára láti múkúrô burú!
(A máscara tem o poder de afastar o mal!)
GLOSSÁRIOIrin Ajó Emi Ojisé: A viagem do espírito mensageiro.
Alafia: Paz.
Odara: Bem.
Ewa: Beleza.
Orun: Céu ou mundo espiritual.
Ayê: Terra ou mundo físico.
O texto da sinopse se refere ao personagem principal da narrativa, vezes, também, como divindade ou espírito mensageiro/caminheiro, ou, ainda, pelas expressões em iorubá "emi" ou "emi ojisé".
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