
SETOR 1
No princípio, era o sonho...
A vida tocava o meu rosto com seu vento; banhava meu corpo com as águas límpidas dos rios que cortam a floresta. O solo germinava a beleza e fornecia o sabor da eternidade. O céu cristalino emoldurava a despretensiosa dança das plumagens.
Assim vivíamos no tempo do sonho. Foi o que ouvi dos espíritos Xapiri, quando imergi no transe de Yakoana. Um caminho de luz resplandeceu por entre as matas e eles vieram até mim dançando com todo seu brilho e esplendor.
Em transcendência, ouço seu canto e suas histórias. Eles me contaram que quem criou a floresta e os rios foi Omama; quem formou as árvores e as plantas, as flores e as sementes; quem concedeu todo esse paraíso fazendo de nós seus descendentes.
No seio da floresta construímos nossas malocas, cantamos e dançamos com nossos filhos e mulheres nas festas da aldeia. A terra, o céu, os rios, os animais, tudo em equilíbrio, tudo em seu lugar. Trama perfeita de Omama que chamamos de lar.
SETOR 2
Mas um dia no horizonte surgiu Xawara. Era o final do tempo do sonho e o começo do tempo da estrada. Sobe a fumaça do metal, escorre a lama da ganância. O ouro canibal devora o sonho e patrocina a matança.
A cruz que esteia o "progresso" desencarde a invasão. Em nome de um vulgo senhor, rouba minha terra e profana meu chão. E foi assim que a gente de Yoasi foi esvaziando a floresta de seus habitantes. Desfilando suas máquinas à diesel sobre o nosso sangue.
O orvalho sumiu do véu das cachoeiras, tantas histórias diluídas em meio às labaredas. Sou caeté, cariri, canindé, tapajó, guarani, potiguar... Meu corpo pereceu, mas minha memória ainda habita o maracá.
Eu sou a voz que ecoa da floresta, sou a resistência dos povos originários. Sou a luz da esperança que ainda nos resta, sou o brado em defesa do nosso santuário.
Eu sou o retumbar do canto dos meus ancestrais, sou a confluência de 305 povos que ainda hoje clamam por respeito. Sou o vestígio de centenas de nações que foram extintas e o vislumbre de um futuro que será refeito.
SETOR 3
Eu transformo filosofia em lenda para que você entenda a minha história. Nossos mitos são sagrados porque a tradição é a nossa escola. Em cada conto, a nossa luta ganha imagem e poesia. Ressoamos nossa voz através da nossa mitologia.
Se a terra aquece feito brasa, Aru balança o remo e traz brisa. Quando das águas fiz brotar Tapiraiauara, denunciei o descaso que a natureza vinga.
O brilho mortal da cobiça reluz nos olhos da fera que emerge da terra. Boiúna de fogo encandeia a noite para os filhos de anhangá vencerem a guerra.
No transe de rapé, a magia do pajé paira na aldeia. Sua reza é forte e afugenta a morte cessando nossa dor. Mil cobras aladas no clarão da lua cheia devoram Xawara, o monstro devorador.
E assim, com mitos e lendas, vamos tecendo o nosso ideário. A nossa visão de mundo é real porque é mítica, mas nossa luta é tão poética quanto política. Ainda sonhamos com um brasil originário!
SETOR 4
Respeite as vozes ancestrais que repercutem no planalto reivindicando a maternidade da pátria-mãe hostil. Se há um marco temporal, este é 1500; quando pindorama não era brasil.
Que as palavras de Sônia, Joênia, Célia e Juruna demarquem seu pensamento devastado. E a luta de Tuire Kayapó, Raoni, Ailton Krenak, Davi Ko-Penawa e tantos mais reflorestem seu coração colonizado.
Ouça a sabedoria que emana das matas, o canto dos beiradões e o som das cascatas. reconhece tua cara, brasil, e não se deixe mascarar. Teu sangue é caboclo e a tua vocação é ser Guajupiã!
Ouça a minha voz no canto dos gaviões! Ela é flecha que atravessa o tempo, luz que ilumina gerações. Se a floresta é a vida, a minha voz é guardiã.
Enquanto existir o povo indígena, ainda existirá o amanhã.
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